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02. Desilusões

O ônibus estacionou uns dois pontos antes da universidade, e eu precisava andar apenas alguns passos até lá. Meus olhos tentavam não se fechar pelo simples fato de ter que acordar antes de todos para fazer o café da manhã e os afazeres, mesmo após apanhar como uma mala velha.

Não era simples conviver com toda aquela situação. Eu sempre percebi ser diferente das outras pessoas; era tímida e reclusa. Talvez fosse normal, considerando o ambiente em que fui criada como uma escrava a vida toda, sem nenhum resquício de amor ou afeto. Não havia muitas convicções ou esperanças para mim; eu nunca conseguiria ser feliz estando naquela casa.

Muitas vezes, já me perguntei: se meus tios têm boas condições, por que não contrataram uma empregada?

Isso era simples de responder; por que raios eles iriam contratar mão de obra se tinham a minha gratuitamente?

Andei mais um pouco com dificuldade, pois meu corpo doía e latejava. Enfim, eu cheguei à universidade.

As garotas me olhavam com desprezo e superioridade. Eu não tinha roupas boas, usava normalmente os restos de minha prima, e eram os restos mesmo. Era um olhar de "coitada desta pobre órfã".

Eu me incomodava com isso, é claro, mas eu sabia que carregava comigo uma arma poderosa: a inteligência e a força de vontade para vencer.

Balancei a cabeça em negação aos olhares, e continuei seguindo em direção à entrada, quando David se aproximou do meu lado.

— Hoje as aulas irão ser mais rápidas — comentou ele.

— Espero que sim — sorri em resposta. Às aulas de anatomia são sempre complexas, mas eu gosto.

— Você é muito inteligente, senhorita Turner, faz algo com facilidade em todas as matérias — disse ele e imediatamente meu rosto corou.

— Eu não diria desta maneira, não ando com tempo para estudar.

David era praticamente um sonho de consumo, ele era lindo, inteligente e o melhor de tudo: me tratava bem. Coisa que eu não estava muito acostumada, muito menos com homens, eu não tinha tempo para isso.

Além de tudo, ele era sobrinho do homem mais poderoso da cidade, William Carter. Ele era misterioso e eu nunca o vi. Porém, as meninas não saíam do pé de David por conta do dinheiro e propriedades da família dele.

Ele despertava algo em mim, acredito que pelo fato dele me tratar tão bem, talvez ele até quisesse algo comigo. Não que já tenha dito algo, mas estava sendo gentil.

Ou eu que seria iludida?

Seguimos andando lado a lado, e um sorriso bobo surgiu em meus lábios, imaginando a possibilidade de sermos um casal, será que eu poderia me apaixonar por alguém?

Adentrei a sala de aula e a senhora Johnson já estava escrevendo na lousa, me sentei rapidamente na cadeira e tirei meus cadernos da bolsa, eu precisava prestar atenção se quisesse manter a minha bolsa. Bolsistas só tinham uma opção, que era estudar.

A aula prosseguiu, e eu me segurava para não cair na carteira, provavelmente pela falta de uma noite de sono de qualidade.

Meus pensamentos se voltavam para a maldita cara e a dívida de trezentos mil dólares em meu nome, eu nunca ia reaver aquela casa. E meu nome estava perdido para sempre.

David estava sentado ao meu lado, soltando piadinhas e me fazendo sorrir, eu devia estar que nem uma completa idiota o observando. Todas as meninas da sala estavam obcecadas por ele, e era comigo que ele fazia piadinhas.

Eu sabia que não era das mais bonitas. Bom, eu podia até ter alguns atributos, os olhos esverdeados que haviam sido características herdadas da minha mãe, eu sabia disso, pois tinha uma foto dela em minha estante. Uma das únicas. Meus cabelos eram castanhos e longos, e tinha uma altura mediana, mais ou menos 1,65 de altura.

Eu tentei buscar mais informações sobre os meus pais, mas sem sucesso, meus tios não me permitiam e não me contavam, com a justificativa que era para evitar o meu sofrimento.

Anne, você fez a atividade de ontem?" ele perguntou se aproximando podia sentir seu hálito quente de tão próximo que ele estava.

— Fiz, sim—o encarei" Essa atividade vale nota David, como não faria?" arqueei as sobrancelhas.

— Eu não fiz, estava ocupado. Você poderia me emprestar depois?

— Claro —sorri e senti minhas bochechas corarem.

— Você é linda, Anne —cochichou em meu ouvido —Obrigado.

Eu sentia como se fosse um pimentão de tão vermelha, ele me causava sentimentos que eu não sabia expressar direito, que merda.

A aula acabou, e David se despediu de mim com um beijo no rosto.

As pessoas foram saindo gradualmente, e eu iria ficar um pouco mais para tirar algumas dúvidas sobre a matéria com a professora. A medicina era a única parte boa da minha vida, e as aulas teóricas eram as melhores. Mal podia esperar por mais.

Me despedi da professora Johnson e saí da sala feliz. Quando saísse dali, iria para a festa escondida.

Eu teria que me esconder para que meus tios não me vissem de forma alguma.

Eu era uma típica Cinderela, porém sem os sapatinhos de cristal, e muito menos o príncipe, é claro.

Fui até o banheiro me trocar; eu havia trazido comigo um vestido na bolsa. Era lindo, todo preto, com alguns detalhes em prata.

Lembro-me de ter juntado tudo que pude para comprá-lo e só usá-lo em uma ocasião especial, já que eu não saía mesmo.

Entrei no vestido, me observei no espelho meio sujo do banheiro da universidade e pela primeira vez em muito tempo eu me achei bonita, passei um batom vermelho nos lábios e por fim soltei os cabelos.

Eu senti como se hoje eu não fosse Anne Turner, mas sim uma jovem que só queria ver uma festa de verdade.

Saí de lá esperançosa; meus cabelos que batiam na cintura estavam esvoaçando por aí.

Quando andei mais um pouco, chegando quase à saída principal da faculdade, o meu sorriso broxou imediatamente quando me deparei com David aos amassos com Amber, uma das garotas medíocres da sala.

Não consegui conter as minhas lágrimas; eu sabia que não tínhamos nada sério e que nunca tivemos nada, na verdade. Mas estávamos flertando há meses, e ele parecia querer algo.

Me afastei rapidamente dali, ao correr acabei dando de cara com Sarah, a faxineira de lá.

Conversávamos sempre que podíamos e ela era uma pessoa maravilhosa. Ela era uma das poucas que sabiam realmente o que eu passava.

Minha menina, você está linda, mas que lágrimas são essas?—Ela ergueu meu queixo.— Por que está chorando, Anne?

— O cara que eu gosto— Falei entre soluços —Ou melhor, que eu pensava gostar, estava se agarrando com outra na saída. Agora não quero sair e encará-lo.

— Querida— ela se sentou no banco ali perto me pedindo para se sentar ao seu lado — Homens são assim, só pensam com a cabeça de baixo. Escute o que eu lhe direi. Não se diminua por eles, pois no fim, a maioria deles só sabem fazer merda e se deitar com qualquer uma que eles veem pela frente. Você acha que vale a pena essas lágrimas?

Fiz que não com a cabeça.

— Então, Anne, vá com esse vestido seja lá para onde você estiver indo. Passe por ele, e ele irá ver o que perdeu. — ela deu um sorriso contagiante.

— Você tem razão, Sarah —dei um sorriso amarelo. — Não vou deixar isso me abalar.

— Se a bruxa da sua tia não te abala, quem é esse garoto? — Ela disse, e rimos.

Sarah tinha razão. Iria para essa festa. Um pouco de liberdade não iria matar ninguém.

Eu estava decidida a estar livre das correntes invisíveis daquela casa, então coloquei a minha máscara, e segui.

O que de pior poderia acontecer afinal?

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